sexta-feira, 8 de julho de 2011

Conto n°2 - Isabela

Seu coração estava vazio. Um vão no meio de seu peito, um buraco negro às avessas, que não sugava nada, apenas expelia. Era o que Clarice sentia. Não havia mais desejo. Seu núcleo havia rompido, numa explosão de nêutrons e prótons, e nada havia restado a não ser poeira. Faltava-lhe sentimento. Amor. Paixão. Faltava-lhe o sal, o molho, a cereja. Faltava-lhe tudo, mas que tudo era esse, que o nada lhe parecia?

Um dia acordou cedo. Sim, cedo para os seus novos padrões. O mundo agora lhe era preto e branco, e o dia, difícil de enfrentar. Às vezes ficava uma, duas, três, quatro horas para conseguir sair da cama. Chegou a pensar em suicídio. E desejou se matar apenas por ter pensado em tal absurdo. O despertador tocava. E ela desligava. E ele tocava, e ela desligava, incessantemente, até a hora que um não agüentava mais o outro e não havia outra escolha a não ser ficar de pé e encarar o seu destino.

Mas naquele dia Clarice havia conseguido se levantar às 10:00h, e portanto tudo que acontecesse daquele dia em diante seria belo, e mágico, e maravilhosamente diferente. Sentia que havia vencido uma batalha, que seus cavalos haviam saído em disparada, que seus guerreiros haviam conquistado terras distantes. Isto tudo porque havia vencido o terrível despertar de um dia sem significados.

Levantou, tomou um banho, se perfumou. Colocou uma roupa bonita. Passou batom. Rímel nos cílios já longos por natureza. Saiu de casa. Para onde iria? São nessas encruzilhadas da vida que podemos passar anos na inércia, numa infinita indecisão entre a direita e a esquerda. Quis voltar. Não se permitiu. Então resolveu ir ao shopping, lugar que sempre detestara, mas que lhe pareceu um lugar com vida. E era isso que Clarice precisava, vida. Qualquer vida era bem-vinda, até aquela das coleções passadas ou das gôndolas de promoções. Tudo era aceitável.

Não se sabe quantas horas passou caminhando naquele shopping. Mas o dia se esvaiu, e já era noite quando se deparou a caminho do carro. O que fizera durante toda aquela tarde? Não se lembrava. Não havia uma memória sequer em seus pensamentos. E ela se esforçou para buscar algum momento marcante, algo que desse sentido àquele passeio. Nada. Foi então que percebeu que não adiantava buscar vida num terreno infértil. É preciso primeiro cuidar do solo. Arar, adubar, regar. E então chorou. Sentada no meio fio, chorou copiosamente, arrancando de sua alma todas aquelas ervas daninhas, e regando seu peito com o único sentimento que lhe havia brotado: pena. De si mesma.

Foi então que um olhar meigo se aproximou. De pé, era um pouquinho mais baixa que Clarice sentada. Seus olhos, numa linha invisível, se encontraram, e a menina perguntou, com a voz de quem há pouco não sabia ainda falar:

- Dodói?

Clarice não sabia o que responder. “Sim, muito dodói”, pensou. Mas como explicar? Como conseguir se esquivar da inevitável próxima pergunta que as crianças, com o coração ainda ingênuo e sincero, sempre fazem?

- Cadê sua mamãe? – perguntou de volta, achando que havia conseguido uma boa saída.

- Mamã dissi qui pá sará dodói, tem qui dá beijim no dodói. Cadê dodói?

Sem conter as lágrimas, ela apontou a testa à menina. Sim, seu dodói estava ali, no meio de todos os seus pensamentos, por dentre todas as suas lembranças, boas e ruins, era ali que sangrava, a sua mente doente. Fechou os olhos, e esperou alguns segundos até sentir a menina lhe beijar a fronte. Abriu os olhos, e a menina lhe perguntou:

- Sarô?

- Muito obrigada – não conseguiu mentir – Mas cadê sua mamãe?

A mãe assistia a tudo de longe, e chamou: “Isabela!”. Foi então que a menina olhou mais uma vez para Clarice, desta vez com olhos de gente grande, e saiu a correr ainda meio desequilibrada em direção a mãe, que a pegou no colo, lhe deu um abraço e lhe falou algo com ternura.

Clarice permaneceu ali por mais alguns minutos. Aos poucos, foi se recompondo, e as lágrimas se escassearam. Lembrou da menina que um dia havia sido, no colo de sua mãe, na vida inteira que ainda tinha pela frente, nas brincadeiras de roda e nos sonhos infantis. Lembrou de como era feliz com pouco, e como o mundo lhe parecia grande demais. Lembrou da escola, dos passeios de bicicleta a tarde e das manhãs que ia para a varanda de casa ver o nascer do sol. Lembrou que sempre gostara de ver o sol nascer, desde muito pequena, muito antes de desejar nunca mais vê-lo.

Algum tempo depois, quando a ferida sarou de fato, Clarice se lembrou da menina que lhe deu amor de graça, e chorou mais uma vez. Gostaria de encontrá-la novamente, lhe dar um beijo na testa e lhe dizer: “sarou”. Mas nunca mais a viu. O tempo passou, e Clarice nunca se esquecera daquela tarde na qual não se lembrava de um momento sequer. E de Isabela.

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