sexta-feira, 29 de julho de 2011

Crônica 3 - Eu canceriana

Ultimamente eu venho lendo o horóscopo. Sim, e digo isso num tom de confissão. Sempre fui avessa a essas coisas, não acredito em astrologia, numerologia, muito menos em duende. O conceito é simples: se os astros direcionam minha vida, porque os buracos negros, ou as espaçonaves extra-terrestres também não têm esse direito? Estão todos lá, no espaço sideral, brigando por um destino aqui, um amor não correspondido acolá... Enfim, pensar que Saturno, por estar numa posição tal em relação a Netuno, faça alguma diferença na minha vida, simplesmente não entra na minha cabeça. Mas então, “por que cargas d’água venho lendo o horóscopo?”, você me pergunta.

Ora, eu abro o jornal, Segundo Caderno, e vou olhando as reportagens, matérias sobre livros, filmes, eventos culturais, tudo muito interessante. Até que, de repente, caio na página de tirinhas, palavras cruzadas, e ele, o horóscopo. Nãohácomonãoler. Quase como uma força gravitacional (os astros me entenderão!) meus olhos são atraídos por aqueles textinhos organizadinhos com uns simbolozinhos tão bunitinhos. Uma coisa fofa. Eu tento não ler (juro juro juro), resistir ao incontrolável impulso. Mas sou traída pelo meu próprio signo, câncer, cuja “modalidade” é justamente “impulsivo”. Leio, e já estava tudo escrito nos céus.

Porém, hoje, os astros me pregaram uma peça. Da-na-di-nhos. Vejam só o que eles me disseram: “A sensação de liberdade e a possibilidade de novas experiências nos tornam mais seguros de nossas emoções”. Estaria tudo bem, se tivessem parado por aí. Sim, concordo, é sabendo que podemos conquistar o mundo que nos permitimos pensar em qual lugar desbravar primeiro. Faz sentido. Mas aí veio a segunda parte, em negrito, num preto saltitante aos olhos: “É tempo de se livrar dos padrões antigos e optar por expressar as emoções de forma completamente diferente do habitual”. Choquei.

Fiquei a imaginar o que seriam padrões antigos. Cartas? Telegramas? Faxes? Afinal, estamos falando da forma, e não do conteúdo. Será que facebook já é antigo? Novo mesmo é o Google+. O que dirão então do e-mail, se não um método arcaico de comunicação? E do Messenger, coitado? Esse aí ganha apenas novas roupagens (bbm, whats app...), mas não deixa de já ser um senhor de meia idade, tentando parecer “garotinho surfista descolado moderninho”.

O horóscopo foi claro, nada de padrões antigos (se livre deles!), mas o que agrava mesmo a situação é o mandamento de que devo expressar meus sentimentos mais íntimos e secretos (que como boa canceriana, tenho aos montes, ou deveria ter) de forma COMPLETAMENTE diferente. Que desespero. Pensei em escrever numa faixa que estou com raiva dos flamenguistas que (mais uma vez) fizeram bonito no campo, e colocar no rabo de um avião daqueles que passam na praia, sabe? Mas achei que isso fosse padrão antigo. Depois pensei: antigo para quem? Para mim não é, nunca fiz! Ok ok, acho que nunca farei também, too much for me.

Quem sabe então se eu pendurasse uma faixa na minha varanda? Ou pagasse por um espaço publicitário no jornal? Ou mandasse um vídeo para o Fantástico? Ou quem sabe, tatuasse no meu corpo: “hoje me sinto saudosa, porém confiante”. Será que Júpiter ficaria feliz com minha obediência? Se vocês virem a lua pulando por aí, é a minha regente expressando (da forma dela) toda a felicidade por ter contribuído de maneira sobrenatural (no sentido místico mesmo) com a minha existência. Vou parar por aqui, ou vocês começarão a achar que andei utilizando certos alucinógenos, daqueles que transformam anões de jardim em duendes. Olha os duendes aí! E quem disse que eles não existem?

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O Clube do Filme - David Gilmour

Você, que não tem filhos, já parou para pensar o quanto deve ser duro educá-los? Vejo alguns amigos meus com filhos e, ao mesmo tempo em que acho tudo lindo e maravilhoso, também penso: “Meu Deus, que responsabilidade enoooorme!”. Aquele pequeno ser humano que hoje é apenas um “pingo de gente”, como minha mãe diz, amanhã será um adulto, com seus próprios valores e princípios. E aí eu me pergunto: “Será que existe uma forma certa de educar? Alguma fórmula mágica? Algum manual de instruções?”. E a resposta é óbvia e desoladora: “Claro que não”.

Porque estou falando sobre isso? Por que é exatamente sobre isso que este livro trata. O pai, um crítico de cinema desempregado, se vê diante de uma situação trágica: seu filho adolescente detesta a escola e está a beira da reprovação em todas as matérias. O pai tenta ajudar como pode, conversando, incentivando, auxiliando o filho nas lições de casa. Mas nada dá certo. O garoto não consegue, simplesmente não consegue. E não consegue porque não quer. Como lidar numa situação dessas?

David, o pai e autor do livro, faz uma proposta ousada. O filho estaria dispensado da escola (sim, DISPENSADO da escola, você não leu errado) se assistisse junto ao pai três filmes por semana (não é muito!) e não se envolvesse com drogas (pedido mais que justo!). O garoto concorda (quem não concordaria?) e eles começam o “Clube do Filme”, que durou três anos. Sim, durante três anos, a única educação que Jesse, o filho, recebeu foram os filmes, e as conversas com o pai sobre os filmes. Mais nada. Loucura? Irresponsabilidade? Não. E lhes explico o porquê.

O grande segredo por trás disso tudo está em apenas uma palavra: tempo. E de qualidade. David, por ser desempregado, tinha tempo de sobra. Mas antes do Clube do Filme, ele não usava esse tempo de forma útil com o filho. Foi assistindo os filmes juntos, e conversando depois sobre as melhores cenas, os diretores, e até mesmo as atrizes mais bonitas, foi que os dois ganharam intimidade um com o outro. E intimidade requer confiança mútua, que só se ganha com o tempo, não na quantidade de tempo, mas sim na qualidade dele.

David deu ao filho algo escasso hoje em dia, e talvez o que precisemos mais: tempo (novamente ele). Penso que talvez seja por isso que temos tantos e tantos adolescentes rebeldes sem causa, deprimidos, criminosos por hobby, mal-educados no sentido literal da palavra. Não lhes deram tempo. Tempo com os pais, com os tios, com os professores. Tempo de qualidade, de conversa jogada fora, de conselhos sem caráter de urgência, de papos sobre assuntos que vierem à cabeça. Os pais estão tão preocupados em dar educação, que se esquecem que a educação é dada vinte e quatro horas por dia, através das nossas ações, das nossas palavras, dos sentimentos que despertamos em nossos filhos, do tempo que passamos junto a eles, e do tempo que estamos ausentes.

Muito mais do que um livro que fala sobre filmes, “O Clube do Filme” é um livro sobre educação, que nos faz repensar nas “formas certas” de educar que temos tão enraizadas em nossas cabeças. Vale a pena ser lido por todos que tem filhos e por aqueles que os desejam (como eu). Não chega nem perto de ser um manual (e nem poderia ser), mas é uma boa lição de amor, respeito (principalmente ao filho) e sabedoria de um pai que queria apenas e exatamente o que todos nós queremos para os nossos filhos: que eles sejam felizes.

sábado, 16 de julho de 2011

Paris França - Gertrude Stein

Não gostei. Pronto, falei.

Comprei o livro com a expectativa lá em cima. Toda essa expectativa baseada na autora, Gertrude Stein, que conheci através do filme do Woody Allen, “Meia noite em Paris”. Ela, uma americana que foi morar em Paris ainda quando pequena, era grande conhecedora das artes, patrocinava pintores como Matisse e Picasso, e realizava o trabalho de revisão de escritores como Hemingway. Daí pensei: “Nossa, um livro dessa mulher deve ser algo assim inacreditável de maravilhoso”. E de fato ela é reconhecida como um gênio literário. Acho que muito gênio mesmo, ao ponto da minha mente limitada não conseguir entendê-la.

Gertrude Stein é considerada a Picasso dos textos. Literalmente. Sua escrita é inspirada no modernismo que ela encontrava nas telas de seus amigos pintores, ou seja, a realidade sendo retratada de várias formas inéditas, a ausência de regras, o simples e complexo ao mesmo tempo. E como ela faz isso? Através de uma escrita quase sem pontuações (não há um ponto de exclamação ou interrogação em todo o texto), onde a autora parece colocar no papel seus pensamentos da forma que eles vêem à cabeça, não se importando com repetições ou frases desconexas. Como se não bastasse, ela também escreve de forma circular. Ou seja, o mesmo assunto é abordado várias vezes durante o livro, em momentos distintos, como se tivesse pipocado novamente na mente da autora, recheando de novo alguns parágrafos, até o momento que algum outro assunto, às vezes sem a menor correlação, surge no pensamento dela e rouba a cena.

Vocês conseguem imaginar a quantidade de vezes que eu reli cada parágrafo para conseguir entender o que ela estava dizendo? Isso quando eu entendia. E quando ela mudava de assunto repentinamente, e eu só descobria dois parágrafos depois? E quando ela escrevia afirmações e perguntas e citações e mais afirmações e mais perguntas na mesma frase, sem nenhuma pontuação para ajudar? E quando ela passava uma, duas, às vezes três páginas inteiras falando exatamente sobre a mesma coisa, repetindo inúmeras vezes o mesmo pensamento? Sinceramente? Me irritei.

Eu gosto da escrita organizada e leve. Gosto do texto tipo “bóia”, sabe? Imagine-se deitado em cima de uma bóia no mar, e a corrente lhe levando. Gosto dos livros que me dão essa sensação, de estar sendo levada, sem esforço físico nem mental. E aí você me diz: “Ah Carol, mas você gostou de Saramago e Ensaio sobre a Cegueira”. E eu respondo: “Sim, gostei, e não é a economia de pontuação nem o assunto complexo que torna o texto difícil de ler. Muito pelo contrário. Saramago conseguiu facilitar a leitura, sendo necessário apenas alguns parágrafos para nos acostumarmos ao seu estilo, e mais nada.” Já com Gertrude, tive a sensação de que sou leiga demais, ou limitada demais, ou ansiosa demais, ou quem sabe tudo isso junto. A bóia furou, e eu tive que nadar contra a corrente, num esforço imenso para conseguir sair do lugar. Cansei.

No mais, o tema central do livro é interessante: Paris, França, os franceses, os estrangeiros, e as relações entre estes quatro elementos. Apesar de muito subjetivo, dá para se ter uma idéia de como era essa interação nas primeiras três décadas do século XX, principalmente o período pré-Segunda Guerra Mundial. É no mínimo curioso perceber como algumas características dessas relações simplesmente desapareceram ao longo dos últimos anos, e outras permaneceram tão intactas e atuais que chegam a assustar.

Enfim, o livro valeu pela experiência, mas acho difícil eu voltar a ler a autora. Mas se você, que é uma pessoa teimosa, quiser se aventurar pelo livro, sinta-se a vontade. Só não diga que não avisei!

terça-feira, 12 de julho de 2011

Paris é uma Festa - Ernest Hemingway

Estava eu na Livraria da Travessa sexta-feira passada, passeando com os olhos por todos aqueles livros quando me dei de cara com este aqui, “Paris é uma Festa”, de Ernest Hemingway. Eu que vi o filme “Meia Noite em Paris” duas vezes (e veria a terceira, a quarta, a quinta...) não resisti e tive que comprar o livro. Por quê? Bom, veja o filme, ou leia meu post (ver o filme é melhor!) e você saberá do que estou falando.

“Paris é uma Festa” é um relato, às vezes até um pouco jornalístico, de como era a Paris dos anos 20, e principalmente, como era a vida naquela época para escritores como Hemingway. É muito duro acreditar que tanto Hemingway quanto outros escritores, hoje mundialmente famosos, na época chegavam a passar fome e penavam para conseguir publicar seus contos. Fico imaginando como seria se eles tivessem à disposição toda esta facilidade que temos hoje de disseminação de informação (vide este próprio blog!). Será que passariam fome? Será que alcançariam a admiração e o sucesso de forma mais rápida? Ou será que parte de todo este reconhecimento que eles têm hoje é fruto de suas histórias de vida, de terem sido verdadeiros no que faziam e não terem se prostituído pelos caminhos mais fáceis?

Através de pequenos capítulos, Hemingway em seu livro vai pincelando sua vida nos anos 20, com relatos da sua rotina como escritor, das tardes e noites em cafés, bebericando enquanto escrevia ou conversava com amigos, alguns completamente desconhecidos na época (e muito conhecidos atualmente). Algumas histórias são engraçadíssimas, outras escandalosas, outras trágicas, e algumas até românticas, como por exemplo, os relatos da relação de Hemingway e sua primeira esposa, Hadley. Todavia, o que reina no livro é um clima saudosista, gostoso e envolvente, que nos enfeitiça e vai nos revelando um mundo artístico e intelectual porém simples, só possível naquela época e naquele lugar, Paris.

Porém, o mais interessante neste livro é o que está por trás dele. Eu explico. Hemingway o escreveu por volta dos seus 60 anos, após já ter recebido todo o reconhecimento por sua obra, inclusive um prêmio Nobel de literatura. Em 1961, época que este livro estava sendo revisto pelo próprio Hemingway, ele se suicidou com um tiro na boca. O livro foi publicado postumamente, e diferentemente de todos seus outros livros, este mostra um Hemingway sentimental, emotivo e saudoso. Lendo um pouco sua biografia, descobri que toda a sua família sofria de uma doença mental que induzia ao suicídio, tanto que seu pai, uma irmã e um irmão também se suicidaram. Entretanto, eu fico a me perguntar até que ponto este livro, que tenho em mãos, influenciou ou não o escritor nesta decisão tão dolorosa de acabar com a própria vida. Será que as lembranças de um passado, pobre e difícil, porém rico em idealismo e felicidade, e a constatação de um presente onde tudo já fora conquistado fez Hemingway desejar tanto voltar no tempo que, diante da impossibilidade disto, desejou sua própria morte? E a última pergunta, que não quer calar: Será que Woody Allen se inspirou nisso para escrever seu último filme “Meia Noite em Paris”? (se um dia eu tiver 5 minutos com Woody, eu juro que faço a pergunta).

Me resta agora ler outros livros de Hemingway para conhecer um pouco mais desse escritor famoso por sua literatura dura e econômica nas palavras (o que não encontramos em nenhuma parte deste livro tema do post). Mas antes, vocês encontrarão aqui um post sobre outro livrinho encontrado na Travessa, o qual também comprei completamente influenciada pelo filme de Woody Allen. Farei suspense e não direi o nome. Aguardem!!!

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Conto n°2 - Isabela

Seu coração estava vazio. Um vão no meio de seu peito, um buraco negro às avessas, que não sugava nada, apenas expelia. Era o que Clarice sentia. Não havia mais desejo. Seu núcleo havia rompido, numa explosão de nêutrons e prótons, e nada havia restado a não ser poeira. Faltava-lhe sentimento. Amor. Paixão. Faltava-lhe o sal, o molho, a cereja. Faltava-lhe tudo, mas que tudo era esse, que o nada lhe parecia?

Um dia acordou cedo. Sim, cedo para os seus novos padrões. O mundo agora lhe era preto e branco, e o dia, difícil de enfrentar. Às vezes ficava uma, duas, três, quatro horas para conseguir sair da cama. Chegou a pensar em suicídio. E desejou se matar apenas por ter pensado em tal absurdo. O despertador tocava. E ela desligava. E ele tocava, e ela desligava, incessantemente, até a hora que um não agüentava mais o outro e não havia outra escolha a não ser ficar de pé e encarar o seu destino.

Mas naquele dia Clarice havia conseguido se levantar às 10:00h, e portanto tudo que acontecesse daquele dia em diante seria belo, e mágico, e maravilhosamente diferente. Sentia que havia vencido uma batalha, que seus cavalos haviam saído em disparada, que seus guerreiros haviam conquistado terras distantes. Isto tudo porque havia vencido o terrível despertar de um dia sem significados.

Levantou, tomou um banho, se perfumou. Colocou uma roupa bonita. Passou batom. Rímel nos cílios já longos por natureza. Saiu de casa. Para onde iria? São nessas encruzilhadas da vida que podemos passar anos na inércia, numa infinita indecisão entre a direita e a esquerda. Quis voltar. Não se permitiu. Então resolveu ir ao shopping, lugar que sempre detestara, mas que lhe pareceu um lugar com vida. E era isso que Clarice precisava, vida. Qualquer vida era bem-vinda, até aquela das coleções passadas ou das gôndolas de promoções. Tudo era aceitável.

Não se sabe quantas horas passou caminhando naquele shopping. Mas o dia se esvaiu, e já era noite quando se deparou a caminho do carro. O que fizera durante toda aquela tarde? Não se lembrava. Não havia uma memória sequer em seus pensamentos. E ela se esforçou para buscar algum momento marcante, algo que desse sentido àquele passeio. Nada. Foi então que percebeu que não adiantava buscar vida num terreno infértil. É preciso primeiro cuidar do solo. Arar, adubar, regar. E então chorou. Sentada no meio fio, chorou copiosamente, arrancando de sua alma todas aquelas ervas daninhas, e regando seu peito com o único sentimento que lhe havia brotado: pena. De si mesma.

Foi então que um olhar meigo se aproximou. De pé, era um pouquinho mais baixa que Clarice sentada. Seus olhos, numa linha invisível, se encontraram, e a menina perguntou, com a voz de quem há pouco não sabia ainda falar:

- Dodói?

Clarice não sabia o que responder. “Sim, muito dodói”, pensou. Mas como explicar? Como conseguir se esquivar da inevitável próxima pergunta que as crianças, com o coração ainda ingênuo e sincero, sempre fazem?

- Cadê sua mamãe? – perguntou de volta, achando que havia conseguido uma boa saída.

- Mamã dissi qui pá sará dodói, tem qui dá beijim no dodói. Cadê dodói?

Sem conter as lágrimas, ela apontou a testa à menina. Sim, seu dodói estava ali, no meio de todos os seus pensamentos, por dentre todas as suas lembranças, boas e ruins, era ali que sangrava, a sua mente doente. Fechou os olhos, e esperou alguns segundos até sentir a menina lhe beijar a fronte. Abriu os olhos, e a menina lhe perguntou:

- Sarô?

- Muito obrigada – não conseguiu mentir – Mas cadê sua mamãe?

A mãe assistia a tudo de longe, e chamou: “Isabela!”. Foi então que a menina olhou mais uma vez para Clarice, desta vez com olhos de gente grande, e saiu a correr ainda meio desequilibrada em direção a mãe, que a pegou no colo, lhe deu um abraço e lhe falou algo com ternura.

Clarice permaneceu ali por mais alguns minutos. Aos poucos, foi se recompondo, e as lágrimas se escassearam. Lembrou da menina que um dia havia sido, no colo de sua mãe, na vida inteira que ainda tinha pela frente, nas brincadeiras de roda e nos sonhos infantis. Lembrou de como era feliz com pouco, e como o mundo lhe parecia grande demais. Lembrou da escola, dos passeios de bicicleta a tarde e das manhãs que ia para a varanda de casa ver o nascer do sol. Lembrou que sempre gostara de ver o sol nascer, desde muito pequena, muito antes de desejar nunca mais vê-lo.

Algum tempo depois, quando a ferida sarou de fato, Clarice se lembrou da menina que lhe deu amor de graça, e chorou mais uma vez. Gostaria de encontrá-la novamente, lhe dar um beijo na testa e lhe dizer: “sarou”. Mas nunca mais a viu. O tempo passou, e Clarice nunca se esquecera daquela tarde na qual não se lembrava de um momento sequer. E de Isabela.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Hell

Outro dia eu resolvi aproveitar a promoção de um destes sites de compra coletiva e fui assistir à peça Hell, com a Bárbara Paz. Confesso que tinha um preconceito contra a atriz, que ficou mais conhecida por sua participação na Casa dos Artistas (se lembram disso?). Acho engraçado como somos preconceituosos em tantas e tantas coisas, na grande maioria das vezes sem nos darmos conta, e como isto nos priva de experimentar, conhecer, aprender... enfim, viver.

O caso com a Bárbara Paz era puro preconceito. O que me importa o que ela fez ou faz na vida pessoal dela? O que deveria nos importar é apenas o trabalho dela, mais nada. E isso eu não conhecia. Nem na TV, muito menos no teatro. Este preconceito quase me fez desistir da peça. Mas eu pensei: “Ah, se minhas amigas toparem, pelo menos é um programa diferente”! Elas toparam, e eu fui.

Hell é uma jovem parisiense que nasceu numa família da alta sociedade francesa. Com muito dinheiro disponível e nenhum limite, Hell é o retrato da futilidade humana, em seu nível mais extremado. Após anos de indiferença dos pais e algumas decepções amorosas, nada mais lhe era sentimento. A vida havia se resumido em compras, bebida, drogas e sexo. Todos eles em excesso, como forma de tapar os buracos daquilo que lhe faltava: amor.

Quem lê isso acha que Hell era mais um destes estereótipos batidos: menina rica, mimada e completamente alienada do mundo ao seu redor. Grande erro. Hell sabia exatamente o que fazia e porque o fazia. Seu modo de viver era sua forma de protesto, e seu quase suicídio diário era sua forma de dizer ao mundo que pior do que viver na pobreza, é viver no mundo vazio, frio, e detestável que o dinheiro (e só ele) tem o poder de criar.

Bárbara Paz está impecável no papel de Hell. Ela se joga no personagem com a alma. E de forma avassaladora consegue fazer algo que eu julgo muitíssimo difícil, e que merece aplausos de pé: ela nos faz sentir a dor de Hell. Por momentos eu me transportei ao palco, e pude sentir na pele toda a angústia claustrofóbica daquele mundo que Hell vive e que já teria me matado se fosse eu no seu lugar. Palmas para Bárbara. E vaias, muitas vaias, para o preconceito que saiu de fininho do teatro por entre as poltronas e não voltou mais.

Eu gostei e recomendo a todos, mas com duas ressalvas. Primeira: se você é alérgico a cigarro, esquece. Bárbara Paz fuma durante toda a peça, o teatro é pequeno e o cheiro é forte mesmo nas últimas fileiras. Nem se arrisque. Segunda: por ser um drama, daqueles bem pesados, tristes e que te tocam o íntimo, não vá assistir se você está deprimido. Neste caso, prefira uma comédia, e deixe Hell lhe fazer “sofrer” em outro momento. Pois é apenas com o coração livre das nossas amarguras que conseguimos entender por completo o sofrimento do próximo, e aprender com este sofrimento.

Hell está em cartaz no Teatro dos Quatro (Shopping da Gávea) até 31 de julho, de quinta a domingo.