segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O Sonho do Celta – Mario Vargas Llosa

A crueldade humana. Às claras ou de forma velada, com violência ou com preconceito, física ou moral, a crueldade necessita apenas de uma brecha, um ambiente propício para se manifestar. Temos a ingênua impressão que vivemos num mundo civilizado, onde matar, ferir, abusar e escravizar são indiscutivelmente crimes. Mas acabe com as leis e cancele as punições para tais crimes, e veja o que acontece. Viramos bichos. Com uma única diferença para estes últimos: não somos cruéis apenas pelos alimentos, sexo ou território, mas sim também pela ganância, pelo poder, pela cobiça e pelo dinheiro.

Roger Casement, personagem central do livro, era um irlandês nascido numa época que a Irlanda era colônia inglesa. Romântico, Roger acreditava que o colonialismo iria levar civilidade aos povos africanos, como educação, saúde e religião. Quanta ingenuidade. Demorou um tempo até Roger se dar conta, mas a constatação foi inevitável: era melhor para os nativos africanos sua condição anterior de “selvagem”, do que a presença do homem branco, que lhes açoitava, escravizava e arrancava qualquer vestígio de dignidade humana, que mesmo “selvagens” eles possuíam.

A primeira parte do livro conta esta experiência dramática de Roger no Congo, onde, de defensor do colonialismo, ele se tornou o porta-voz das tribos africanas contra a exploração de seu trabalho e a crueldade contra seu povo, denunciando as barbáries e atrocidades cometidas por uma empresa inglesa a qual ele mesmo fora empregado. E num tom quase que sentencioso, o narrador nos revela algo que parece ser a espinha central do livro: “Ele fora humanizado pelo Congo, se é que se tornar humano significa conhecer os extremos a que podem chegar a cobiça, a avareza, os preconceitos, a crueldade. A corrupção moral era isto, sim: algo que não existe entre os animais, uma exclusividade dos humanos. O Congo lhe revelou que essas coisas fazem parte da vida. Abriu seus olhos.”

De fato, Roger nunca mais foi o mesmo. A não ser por uma certa ingenuidade que o perseguiu até os seus últimos dias. Após o Congo, foi cônsul britânico no Brasil, até receber a tenebrosa missão de investigar possíveis crimes cometidos por uma empresa peruana na selva amazônica contra os indígenas. A realidade do Congo se repete no continente americano, o que traz duas conseqüências antagônicas ao nosso personagem: ao mesmo tempo que ele recebe a condecoração de cavalheiro britânico por sua coragem e ousadia em denunciar os abusos aos direitos humanos, Roger se torna cada vez mais partidário da independência da Irlanda, ou seja, inimigo do Reino Unido que colonizava seu país e “explorava” seu povo, o povo de Roger.

O grande trunfo de Mario Vargas Llosa (na minha opinião) foi buscar numa história verídica elementos pessoais de Roger, e transformá-los num romance repleto tanto de fatos históricos quanto de sentimentos, desejos e medos que somente Roger teria a capacidade de nos contar de forma completamente verídica. Ou seja, a história também se transforma em ficção. E isto, num primeiro momento, chegou a me incomodar, pois me senti invasora de uma privacidade meio inventada de um indivíduo que realmente existiu. Mas depois entendi o propósito do autor: através da intimidade (mesmo que parcialmente inventada) de Roger, podemos entender a complexidade da crueldade humana. Não apenas aquela física e sanguinária, mas também a psicológica, aquela que atinge a alma e não o corpo, e que se traduz muitas vezes em preconceito, covardia, vergonha e solidão. Uma crueldade tão violenta quanto a outra, mas que nós insistimos em praticar até os dias de hoje, quase um século após a vida e morte de Roger. E continuaremos, enquanto houver brechas, enquanto houver ambientes propícios, e principalmente, enquanto formos humanos, sem a menor sombra de dúvida.

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